sábado, 9 de janeiro de 2016

FLORILÉGIO GOENSE - RODRIGUES MIGUÉIS



José Rodrigues Miguéis (1901-1980)



José Claudino Rodrigues Miguéis nasceu em Lisboa a 9 de Dezembro de 1901, e faleceu em Nova Iorque a 27 de Outubro de 1980. Autor de Páscoa Feliz, novela (1932); Onde a noite se acaba, contos e novelas (1946); Léah e outras histórias (1958, Prémio Camilo Castelo Branco, 1959); Uma aventura inquietante, romance (1959); Um Homem sorri à Morte, narrativa autobiográfica (1959); A Escola do Paraíso, romance (1960); O Passageiro do Expresso, teatro (1960); Gente da Terceira Classe, contos e novelas (1962); É proibido apontar – Reflexões de um burguês -I (1964); Nikalai! Nikalai! (1971).      
Formado em Direito em 1924, todavia nunca exerceria de forma sistemática a profissão, tendo consagrado a sua vida à Literatura e à Pedagogia. Neste último campo, viria a licenciar-se em 1933 em Ciências Pedagógicas na Universidade de Bruxelas.
Herdando do pai, um imigrante galego, ideias republicanas e progressistas, cedo entrou em conflito com o Estado Novo, o que acabaria por o levar ao exílio para os Estados Unidos a partir de 1935.
Pertenceu ao chamado grupo da “Seara Nova”, ao lado de grandes autores como Jaime Cortesão, António Sérgio, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa ou Raul Proença.

«O Espelho Poliédrico, crónicas»
Editorial Estúdios Cor, SARL – Lisboa, 1972



Nota do Autor
Estas crónicas – memórias, comentários e ficções -, agora coligidas na ordem aproximadamente cronológica dos assuntos, foram na sua maioria publicadas no "Diário de Lisboa", entre 1968 e 1971, sob o mesmo título geral.

Policromia Indiana

" (…) Nos anos vinte andava pela Baixa, onde o conheci e nos fizemos amigos, um indiano, católico e de nome português, que dizia pertencer à nobre casta dos xátrias, ou príncipes-guerreiros, a qual, segundo a sua versão algo simplista da história da Índia, fora destronada e subjugada pelos brâmanes. Nunca cheguei a compreender, nem ele me explicou, como é que os bravos guerreiros se deixaram assim subverter pelos inermes sacerdotes. Havia nele uma espécie de ressentimento ancestral contra os usurpadores, e era talvez isso que o levava a dizer-se «comunista». Eu ria-me… Instou-me muito a apresentá-lo a Jaime Cortesão, ao tempo director da Biblioteca Nacional. Autorizado por este, levei-o a São Francisco, onde durante meia hora ele massacrou o historiador com uma nervosa e loquaz divagação a respeito das tribulações que sofrera a sua nobre casta. Pura propaganda, suponho eu. Esgotado o assunto, despediu-se. Depois de o reconduzir cerimoniosamente à porta do gabinete, Cortesão voltou-se para mim: «Que grande xátria me saiu este seu amigo!»
        Tempos depois, o Gonzaga (chamemos-lhe assim) abordou-me no Rossio, muito excitado:«Já não somos amigos!» disse.«Você traiu a nossa amizade. Desconsiderou-me!» Intrigado e risonho, indaguei das suas razões. Tornou-me ele:«Você, ontem à noite, andou a passear aqui, de braço dado com o Eucaristino de Mendonça! –Ora essa! Então ele não é indiano, português e católico como você? E ainda por cima poeta!»

O Eucaristino de Mendonça* era um moço magro, simpático e algo triste, pobre com certeza, de pele escura mas de feições delicadas, o tipo perfeito – diria eu – da raça dos «príncipes», ariana pura, em contraste com o Gonzaga, que era mais claro de tez, mas de traços um tanto grosseiros: dravidianos. Publicara e tinha-me oferecido em 1924 um livrinho de versos – Hindus, poemas indianos* – composto com a joalheria pseudo-oriental que ainda então era de moda entre nós, e recheado de ingenuidades, fonemas indianos, itálicos, erros de métrica e de grafia. Creio que o autor morreu tuberculoso pouco tempo depois. Talvez intoxicado de bijuteria poética?
 O Gonzaga bradou fora de si: « Ele é sudra! E eu sou xátria! Não temos nada em comum!»   O meu comentário deve ter sido breve: «Bolas!»
     As nossas relações esfriaram um tanto. Corridos anos, li num jornal que ele aderira ao partido do governo. Professor de inglês, desempregado, procurava dar entrada no quadro docente de um liceu. O gesto não me surpreendeu nem me afectou: era da sua conta. Certa manhã, estava eu sentado a sós n’A Brasileira do Rossio, quase deserta, quando ele entrou e me abordou. Nem o convidei a sentar-se à minha mesa. De pé, ele começou a dar-me as razões da sua adesão. Achando-as desnecessárias, pedi-lhe delicadamente que não continuasse. Ele negou, excitado, que fossem explicações. Então o que eram? Perguntei-lhe. Ele voltou à carga –o pão-da-boca e outras que tais- e eu, já enervado (nunca pude ver num homem rebaixar-se) gritei alto: «São explicações! Não as quero ouvir! Guarde-as consigo!» A minha voz, espantada de si própria, reverberou nos espelhos e as raras cabeças voltaram-se a olhar-nos. Como ele se não calasse, dei uma palmada no tampo da mesa e berrei: «Vá-se embora! Não me chateie e não me volte a falar!» Então ele, pálido, recuou e disse: «Ah, pois muito bom dia!» e foi tomar lugar algures, atrás de mim. Voltei-me na cadeira, a olhá-lo.
     Sentados em fila contra os espelhos, estavam quatro ou cinco indianos, calados, imóveis, inexpressivos. Não pude ler qualquer pensamento ou sentimento – cólera, ironia, fosse o que fosse – naqueles olhos negros e luzentes, naqueles rostos redondos, macios, morenos, sem uma ruga: impenetráveis. Arre! Confesso que me senti pequeno diante de tanta impassibilidade. E o Gonzaga lá estava. O café recaiu no silêncio matinal e sonolento, e eu acabei de tomar a minha droga.
     Percebi então que aqueles homens não eram da minha grei, não eram portugueses (como o cónego). Foi a primeira vez que medi o vão ou abismo que nos separava: quatrocentos anos de convívio racial e cultural, de burocracia e proselitismo, de baptismos e apelidos nobres, não tinham criado entre nós qualquer unidade de carácter. (Isto não obstante as inúmeras e fecundas lealdades de tantos indo-portugueses, alguns deles ilustres.)
    No amigável convívio de intelectuais indo-portugueses, trazidos à Seara Nova por António Sérgio, ele próprio filho de mãe indiana, já eu me apercebera  de que a sua atitude filosófica nada tinha em comum com o nosso racionalismo idealista, reformista, nem com as várias nuanças do materialismo ocidental: era antes um misticismo eclético, feito de tradições hinduístas mais ou menos amalgamadas e mal assimiladas, em que entravam os Vedas, o Kharma, a Metempsicose, Rabindranath Tagore, Gandhi, Annie Besant, Khrisna Murti…, tudo o que, desde Schopenhauer, creio eu, do arianismo de Max Muller e outros, se tornara de moda no Ocidente, e sobretudo no mundo anglo-americano: o orientalismo ou indianismo que tem fascinado muito boa gente, incluindo Romain Rolland e Hermann Hesse. (…)"

* «A Literatura Indo-Portuguesa», Vimala Devi e Manuel de Seabra, JIU Lisboa 1971, p.319

 JFSR 2016

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