domingo, 31 de janeiro de 2016

Miscelânea Goesa



 Miscelânea Goesa

«PAPÉIS DA PRISÃO», José Luandino Vieira


José Luandino Vieira, pseudónimo literário de José Vieira Mateus da Graça (Vila Nova de Ourém, 4 de Maio de 1935), português de nascimento, passou a juventude em Luanda, onde concluiu os estudos secundários.
Durante a Guerra Colonial, combateu nas fileiras do MPLA.
Detido pela PIDE, pela primeira vez em 1959, foi um dos acusados do Processo dos 50, acabando condenado a 14 anos de prisão, em 1961.
Em 21 de Maio de 1965, encontrando-se Luandino preso há quatro anos no Campo de Concentração do Tarrafal, a Sociedade Portuguesa de Escritores, então presidida por Jacinto do Prado Coelho, atribuiu-lhe o Grande Prémio de Novela pela sua obra «Luuanda».
Luandino Vieira cumpriu a pena de prisão no Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, regressando a Portugal em 1972, com residência vigiada em Lisboa. Viria a trabalhar com o editor Sá Costa até à Revolução de Abril.
Em 1975 regressou a Angola. Foi co-fundador da União dos Escritores Angolanos, de que foi secretário-geral (1975-1980 e 1985-1992), e secretário-geral adjunto da Associação dos Escritores Afroasiáticos (1979-1984).
Na sequência das eleições de 1992, e do reinício da guerra civil angolana, regressou a Portugal.
 Radicou-se no Minho, em Vila Nova De Cerveira, onde vive em isolamento na quinta de um amigo, dedicando-se à agricultura.

Durante os anos de cárcere, José Luandino Vieira coligiu um acervo de textos constituído por 17 cadernos. O processo de escrita destes «Papéis» tem como termos cronológicos e fronteiras espaciais a entrada no Pavilhão Prisional da PIDE em Luanda (1961) e a sua saída do Tarrafal (1972).
 A materialidade destes cadernos é composta por aproximadamente 2000 fragéis folhas manuscritas onde o autor anotou a sua visão do cárcere como observatório da nação angolana, manifestou os seus projectos políticos e literários, evidenciou o projecto comunitário de Angola como o veículo da união e resistência colectiva, expressou angústias e sonhos pessoais.





14-5-63
   Muito movimento de tarde: J.R. quis-me dizer qualquer coisa mas não percebi. Vai escrever. S. Coelho afirmou-me que o pai do Z.M. tinha sido preso. Perguntei ao Augusto: hoje só entraram 4 estudantes negros, por uma «brincadeira» (como ele disse) e saem amanhã. Mas agora mesmo às 6 horas chegou um homem baixo, escuro, de óculos mto escuros, e grande mala acompanhado do advogado indiano Noronha (que foi juiz em N [ova] Lisboa). Será o pai do Z.M.? Mas veio sozinho, sem guarda. Terá sido impedido de embarcar?

15-5-63
   Ontem a mala e o homem baixo q. veio c/Custódio Noronha, eram visita para o Sebastião Coelho. Viu o Jac. Ele ir ter com eles, enquanto na visita.

1-9-63
   O chefe que está hoje de serviço (chefe Guerreiro) é natural de Goa, ajudante do Ten. Presa Fernandes da Sec. De Informações (i.e. pide) e segundo me disse o Zuzé na Índia era «bufo» apenas… aqui subiu logo a «chefe»…


4 e 5-XII[-1965]

   Um juiz indiano levanta-se e fica de pé no café, em Lisboa, enquanto outro entra e toma o seu café. É o porteiro do teatro D. Maria II.
   Mas é que o juiz é de casta inferior ( seg. A. Jacinto que lho contou o dr. Avelar).

Papéis da Prisão, Apontamentos, Diário, Correspondência (1962-1971), Vieira, José Luandino, CAMINHO, 2015

*

JFSR 2016


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

“OS FESTEJOS DO CENTENÁRIO DA ÍNDIA”



“Os Festejos do Centenário da Índia”
IV Centenário do Descobrimento da Índia – 1898













A respeito dos “Festejos do (IV) Centenário da Índia”, Tomás Ribeiro insurgiu-se contra o propósito do governo presidido por Hintze Ribeiro ( líder do Partido Regenerador) de celebrar, em 1897, o quarto centenário da partida de Vasco da Gama,  e não do descobrimento da Índia, que ocorreria em 1898, bem como, ainda, de promover uma exposição universal, com o País endividado perante os credores internacionais, publicando,  no n.º 3 do "Mensageiro", um poemeto intitulado «Senhor, Não!», dirigido ao Rei D. Carlos.


















 “Hoje o Mensageiro insere a respeito da festa internacional que se prepara para 1898 o memorial a El-Rei: - Senhor, não! -
 A minha primeira ideia foi logo formular um Recurso á Coroa. E aqui vae. 

















Havia eu exposto já no anno passado – 1896 – por via do meu illustrado collega O Popular, ao bom senso do governo, então presidido pelo Sr. Hintze Ribeiro*, à gente portugueza, à imprensa de Portugal e à respectiva comissão executiva creada por

Hintze Ribeiro
decreto de 15 de Maio de 1894, que a festa (nacional) devia antes effectuar-se em 1898 por ser então o quarto centenário do descobrimento da Índia e não em 1897 que apenas era o centenário da partida de Vasco da Gama para o descobrimento e não, do descobrimento. E como isto parecesse mais razoável não porque eu o dissesse, mas porque o era, visto ser o descobrimento da Índia e não a sahida do Tejo o grande feito épico a glorificar, assim se decidiu no conselho do Olympo.

(…) Agora expliquemos o título do memorial: - Senhor, não!
Pode parecer uma intimação ou uma impertinência e é uma súpplica.
(…) Convidar os nossos credores estrangeiros a uma festa antes de concertarmos com elles as nossas dívidas!!...
- Senhor, não! – Isto não é possível sem deshonra para nós. Até me permitto sublinhar a palavra: - deshonra.(…)

Feitoria, 23 de Maio de 1897
                                                             Um – Portugal-Velho

Senhor, não!
I
Eu, abaixo assignado, um mau cauzídico,
mas velho portuguez, rude e serrano,
escrevo neste pleito ha mais d’um anno
sem que me ouvísseis nunca, Senhor Rei!
por isso hoje, recorro a Vós, e, supplice,
directamente venho crente e attento,
pedir-Vos com sincero acatamento
um despacho, - alvará, - decreto, - ou lei –
contra uma decisão cruel, sacrílega!
do governo, Senhor, do ministério
cujo patriotismo e bom critério
tive o ouzio de crer e proclamar.
Vamos ter a parodia dos Luziadas!
vamos ver os barões assignalados
vestidos d’arlequins, sarapintados,
troupe de foliões a fungagar!

Uma lei decidiu por voto unânime
consagrar centenario á egrégia fama
do grande Capitão – Vasco da Gama
e Vós sanccionastes esta lei.
Hoje, errando os preceitos chronologicos,
o governo decreta centenário
a quantos caibam no cadoz do Aquário!...
- cúmplice não sejaes, não, Senhor Rei!

(………………………………………………………………..)
Albuquerque, o fidalgo, sem avizo,
ao ver a caza cheia, causa dó,
por não ter logo alli que dar aos hospedes!
offerece-lhes no fim, com muita magua,
que os pode constipar, um copo d’agua;
e dança então o Índico – Mandó -

Os Ranes de Pondá e de Canácona
honrarão a première dos RECREIOS.
findas as diversões e os devaneios
lança-se fogo a todo o Colizeu
e arde tudo!
                  Depois: a festa fúnebre
por alma d’este reino de festanças.
Pela porta das Bemaventuranças
Vê-se o vosso governo entrar no céo.

(………………………………………………………………)
Não, Senhor, não! Reconquistado o preito
devido a Portugal, de novo - augusto -
convidemos o mundo, ha muito affeito 
a trocar homenagens com o venusto
velho. E então de cruz de Cristo ao peito,
- a cruz de simples cavalleiro, - é justo!
entre galas, à praia do Restello.

Antes d'isso e emquanto os seus credores
o trouxerem de rastos e aos pedaços, 
e lhes não validarmos seus penhores,
e nos chamarem - pobretões, devassos, -
emquanto lhe apuparem desprimores
nos Circos d'essa Europa os vis palhaços,
o convite é baixeza de villão!
            Senhor, Não."

 JFSR 2016
       

domingo, 24 de janeiro de 2016

RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (5)



RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (5)

INDEFERIDO… POR SER CANARIM!

" Ontem e hoje

Antes que o intenso movimento colonial europeu despertasse Portugal do seu letargo tantas vezes secular, a África Oriental jazia esquecida e só nela trabalhavam meia dúzia de homens de Portugal e da Índia num esforço sinérgico, num ideal comum – o engrandecimento da Nação – quase abandonados pelos governos da metrópole. Eram eles que empunhavam a bandeira portuguesa e batendo-se com as armas e cimentando as conquistas pelo comércio, preparavam terreno para toda essa espantosa evolução que vai transformando o continente negro dando-lhe o cunho comum dos povo civilizados. Esqueceram-se os serviços de tantos desses beneméritos, verdadeiros pioneiros da civilização europeia na África Oriental. Silva Porto e Manuel António morreram abandonados. O exército da Índia que aguentou as arremetidas do Bonga foi extinto, e volvidos vinte anos – que nem os factos são tão velhos que tão depressa se esquecessem -  no grande império português, criado e consolidado pelo maior génio que Portugal contemporâneo produziu – António Enes –
 literato, dramaturgo, jornalista, guerreiro e estadista, em tudo sublime nos seus arrojados voos; 













neste mesmo império mandava soberanamente, despoticamente, um cabo de guerra feliz, o comissário régio Mousinho de Albuquerque, 
 que, nutrindo de velha data ódio entranhado contra os filhos da Índia Portuguesa, neles cevava com sarcasmo inaudito e cruel." *
(*) São bem conhecidos os seus despachos: «Indeferido por ser canarim».














Bibliografia:
Silva, F. Wolfango da *, «Estudos Económicos e Sociais sobre a Índia Portuguesa (Propostas à Junta Geral da Província)», Nova Goa, 1910, p.2














                                                * Francisco António Wolfango da Silva(Nova Goa,1864-1947),
 Coronel-médico, Chefe dos Serviços de Saúde da Índia, Vogal do Conselho do Governo, Presidente do Instituto Vasco da Gama ( fundado, em 1871,por iniciativa de Tomás Ribeiro, hoje Instituto Menezes Bragança), onde se ostenta o seu retrato a óleo, da autoria do pintor português Fausto Sampaio.
v.«Dicionário de Literatura Goesa»,Aleixo Manuel da Costa,Instituto Cultural de Macau.Fundação Oriente,1997, vol.III,págs.226-231.










 JFSR 2016

RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS - ÍNDIA (4)




RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (4)

Gomes da Costa e a bala do índio

Manuel Gomes da Costa - que viria a ser o chefe do golpe de “28 de Maio de 1926”, que instaurou a Ditadura Militar e possibilitou a ascensão de Salazar e do Estado Novo - enquanto capitão na Índia, tendo participado na repressão da revolta dos Ranes de 1895/96, deixou consignado no Relatório de Campanha, cuja publicação foi promovida pelo seu filho Carlos Gomes da Costa, o seguinte: 


«A dissolução do exército da Índia, em 1871, marca uma ètape gloriosa para o canarim (1), porque o exército tinha sido o refúgio dos descendentes de europeus que ocuparam os postos superiores, excluindo deles, sistematicamente, os seus rivais em predomínio. Enquanto existisse, os descendentes tinham uma força e o canarim não poderia dominar a situação.
A grande barreira que se opunha ao conseguimento dos seus fins, caíra por terra – seguiu-se uma luta feroz nos jornais, luta donde os descendentes saíram a escorrer sangue. 
 O canarim triunfava, impava de orgulho, sentindo-se senhor dos destinos da Índia, e um deles (2)no seu jornal, vaticinava aos descendentes dos heróis da Conquista «que os seus filhos haviam de ser amas de leite dos netos dele, canarim». (3)
Bernardo Francisco H.da Costa










«No dia 25 de Abril, imediato ao da chegada a Lisboa, era o Capitão Gomes da Costa ferido com um tiro numa perna, pelo canarim Constâncio Roque da Costa*. Este tiro foi o segundo da Campanha da Índia, consequência ainda dos ódios da política indiana e epílogo da revolta de Goa.(…)




Constâncio Roque da Costa
 A bala do índio cortou o femural da perna direita do heroe de Gutnem, deixando-lhe uma ferida que, permanentemente aberta, o incomodou todo o resto da vida.
A fama dos seus feitos chegará entretanto ao conhecimento de Mouzinho de Albuquerque que o requisitou para capitão-mór do Mossuril (districto de Moçambique); e assim, mal tinha abandonado as muletas, Gomes da Costa embarcava para aquela colónia em Setembro de 1896.» (4)

* Constâncio Roque da Costa (Margão - Goa, n.1858, f.1934), diplomata, encarregado de negócios na Argentina e Uruguai. Entre as várias missões que desempenhou, a ele se deve, em grande parte, o bom êxito na obtenção do serviço do "Sud-Express" diário de Lisboa a Paris. Em 1910, após a proclamação da República, ocupava o cargo de director-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Preso em 1913, como implicado na tentativa monárquica de 21 de Outubro, foi afastado do serviço público, regressando, em 1916, definitivamente a Goa.
(1) «Eu não escrevo esta palavra com o sentido ultrajante, que muitos lhe querem dar. Designo como canarim, o índio cristão, pois é nesta acepção, eu deve tomar-se esta palavra, embora etnologicamente signifique: - habitante de Canará – por se supôr que os primeiros habitantes de Goa dali vieram.»
(2) Bernardo da Costa, no seu jornal «O Ultramar».”
(3) Costa, Carlos Gomes da: «A Revolta de Goa e a Campanha de 1895/1896», Lisboa/MCMXXXIX, págs.13-14
(4) Costa, Carlos Gomes da: «A vida agitada do Marechal Gomes da Costa, Documentário da vida militar e política do grande soldado» compilado por seu filho, Livraria Popular de Francisco Franco, 1.º vol.,págs,46-60.

JFSR 2016

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (3)

 RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (3)



Bernardo Peres da Silva, Prefeito dos Estados da Índia
(o deputado "canarim")

Bernardo Peres da Silva (Goa, Neurá, 15 de Outubro de 1775 — Lisboa, 14 de Novembro de 1844), médico, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Goa, e político liberal português, de origem goesa, deputado às Cortes do vintismo e da Monarquia Constitucional Portuguesa, e o único goês a assumir o governo da Índia Portuguesa.
A notícia da nomeação de Bernardo Peres da Silva como Prefeito dos Estados da Índia, foi recebida em Goa pelo final de Dezembro de 1834.
 A colónia portuguesa, que se havia oposto à candidatura às Cortes de Bernardo Peres em 1822 e 1837, bem como o vice-rei D. Manuel de Portugal, e os europeus em geral, não compreendiam bem o confiar àquele o governo da Índia.
“Sabe Deus, representava ele às Cortes, em 1827, a colónia portuguesa, o que solicitará o deputado canarim que para aí vai, no caso que tenha entrada nas Cortes, pois estes indígenas beijam os ferros por gosto, com tanto que possam também por sua vez praticar violências entre o mísero povo miúdo… Haja Vossa Alteza de lançar sobre os Portugueses da Ásia as suas prudentes vistas, a fim de extirpar os princípios subversivos, e desorganizadores do que se acham hoje os indígenas mais do que nunca possuídos, e as causas que prometem um fim desastroso.”(1)


Tendo chegado a Goa no dia 10 de Janeiro de 1835, tomou posse do cargo no dia 14 daquele mês. Sendo a primeira vez que um cidadão natural de Goa ia governar a Índia Portuguesa, Bernardo Peres da Silva foi inicialmente recebido com grande entusiasmo pela população local, embora entre os militares e funcionários de origem europeia fossem muitas as dúvidas e grande a hostilidade ao novo regime que ele representava.
Algumas das medidas tomadas por Bernardo Peres da Silva afectaram seriamente os interesses instalados em Goa e foram particularmente mal recebidas pelos funcionários metropolitanos destacados na colónia, que se sentiam ameaçados no seu estatuto e privilégios, e pelas chefias militares, exclusivamente metropolitanas. A desconfiança com que fora recebido, e o descontentamento causado pelas suas acções iniciais, esteve na base da revolta das forças militares, desencadeada na noite 1 de Fevereiro de 1835.
Apesar de nem todas as unidades militares terem apoiado a revolta, esta terminou com a destituição de Bernardo Peres da Silva, apenas 17 dias após a sua tomada de posse, tendo este sido detido, embarcado à força num navio e obrigado a partir para o exílio em Bombaim.
Submetendo-se à vontade real, Bernardo Peres da Silva aceitou a nomeação do novo governador Simão Infante de Lacerda de Sousa Tavares, barão de Sabroso, e regressou a Goa, onde se reintegrou na vida política da colónia.
Voltou a ser eleito deputado às Cortes em eleições realizadas a 2 de Setembro de 1838, sendo sucessivamente reeleito em 7 de Abril de 1849 e em 9 de Outubro de 1842. A sua acção no Parlamento foi de grande relevo, tendo como membro da Comissão Parlamentar de Política Colonial defendido intransigentemente os interesses da Índia Portuguesa e de outros territórios ultramarinos portugueses. Também propôs a retirada das forças militares metropolitanas estacionadas em Goa. Um dos seus discursos na Câmara dos Deputados foi publicado em 1840, com o título de Aos Representantes da Nação Portuguesa. Manteve-se como deputado eleito por Goa até falecer.

"(…) Frederico Denis de Ayala, escritor, natural de Goa e descendente de europeus, um mal disfarçado anti-indígena e irredutível anti-perista, quanto ostensivo europeísta a apaixonado da colónia branca de Goa, em 1887 retrata a Bernardo Peres em termos irreverentes e ríspidos que antes revelam a sua própria atitude hostil de espírito:
“Era ossudo e nervoso, cabelo raro, quasi calvo. As faces cavadas, o nariz caia-lhe em asas sobre o beiço superior franzido deixando ver os dentes. Parecia doente e era-o na alma. O rosto anguloso, o olhar seco e ávido, os ombros um pouco erguidos, indicavam o quer que é de rebelde e ambicioso. Nem bondade nem inteligência – um anjo caído” (Goa antiga e Moderna, 2.ª ed.,pg.212)." (2)



Bibliografia:
(1) Ayalla, Frederico Diniz D’, “Goa antiga e moderna”,Esquilo,Lisboa,2011,p.211
(2) Carvalho, Jeremias Xavier de, “Ecoando através das eras” Parte II – Três Centenários Fasc. 1.º Bernardo Peres da Silva, Arcádia Oriente e Ocidente, Goa, 1980, p.7.

 JFSR 2016

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (2)



RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS – ÍNDIA (2)

O termo “Canarim”

“ Como salientaram Yule e Delgado, nos glossários  respectivos, o termo “canarim” deveria aplicar-se, em sentido restrito, aos habitantes de Canará, antiga região carnática do Deccan. Mas os portugueses, desde os seus primeiros dias, aplicaram erradamente o termo ao povo de Goa que, geograficamente, são Concani-Marati, etnicamente indo-arianos, e glotologicamente indo-europeus. O termo canarins era algumas vezes usado para designar os que se haviam tornado cristãos, outras os que tinham permanecido hindus, e ainda outras para ambas as categorias, indiscriminadamente.
Canarim *

Durante o século XVIII, e talvez mais cedo, a palavra canarim adquiriu uma conotação ofensiva, presumivelmente porque os portugueses se puseram a utilizá-la em desprezo dos habitantes nativos de Goa. Ao discutir a maneira como conseguir tropas para a expedição anglo-portuguesa contra Kanhoji Angria, em 1721-22, D. Christovão de Mello observou:«Não se pode confiar nos canarins pois são totalmente inúteis (infeliz ou felizmente para nós, conforme o caso) e nem sequer podem defender as suas próprias casas, muito menos atacar e conquistar fortalezas» (Cf.P.Pissurlencar, Assentos do Conselho do Estado da Índia,V,1696-1750,págs.340,482). Este é típico entre muitos comentários maliciosos idênticos”. (1)



*Canarim: Índia, oficina de Goa c. 1785-1800, óleo sobre tela, Funchal, Museu Quinta das Cruzes (antiga colecção de Guilherme de Alpoim Calvão), in Catálogo da Exposição "Esplendores do Oriente Jóias de Ouro da Antiga Goa", MNAA/INCM,2014


(1) Boxer, C. R.,in “Relações Raciais no Império Colonial Português 1415-1825”, Apêndice Uma nota sobre o termo “Canarim”, p.84.

 JFSR 2016

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS - ÍNDIA (1)



RELAÇÕES RACIAIS NO IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS - ÍNDIA (1)

C. R. Boxer (1904-2000), como literariamente é conhecido Charles Ralph Boxer, é um historiador britânico, notável conhecedor da historiografia colonial portuguesa e holandesa. 



Militar de carreira, aposentado como major no Exército em 1947, o King's College, de Londres, ofereceu-lhe a Cátedra Camões de Português, cargo que ocupou durante vinte anos, tendo publicado cerca de 86 livros e opusculos sobre a história do Oriente, sobretudo dos séculos XVI e XVII.
É um dos maiores estudiosos da colonização portuguesa, sobre a qual publicou extensa bibliografia.


 Desta destacamos “Race Relations in the Portuguese colonial empire 1415-1825” , publicado pela Oxford University Press, em 1963. com tradução portuguesa, intitulada “Relações Raciais no Império Colonial Português”,   de Edições Afrontamento, Porto, 1977.

 “ (…) outro jesuíta italiano, padre Alexandre Valignano, famoso reorganizador das missões jesuítas da Ásia, classificou a população da Índia portuguesa (no sentido mais estrito do termo), nas seguintes categorias. Primeiro, os portugueses nascidos na Europa ou reinóis. Segundo, portugueses nascidos na Índia de pais europeus puros que eram muito poucos e distantes entre si. Terceiro, os nascidos de pai europeu e de mãe euroasiana, chamados castiços. Quarto, os meios sangues ou mestiços. Quinto e último, os indígenas indianos puros ou aqueles que tinham apenas uma gota de sangue europeu em suas veias.
(…) Que a maioria dos portugueses nascidos na Europa estava convencida da superioridade branca é demonstrado pela história das ordens religiosas e das forças armadas da Coroa, na Índia.
(…) A política da Coroa portuguesa relativamente à barreira da cor no Estado da Índia nem sempre foi clara e consistente, mas, no conjunto, os Reis portugueses seguiram o princípio de que a religião e não a cor deveria ser o critério para a cidadania portuguesa, e que todos os convertidos asiáticos ao cristianismo deveriam ser tratados como iguais dos seus correligionários portugueses.
(…) O que é certo é que a discriminação racial a favor dos portugueses nascidos na Europa, se nem sempre aceite na teoria, era larga e continuadamente exercida na prática pela grande maioria dos vice-reis e governadores ultramarinos.
(…) Tal como os reinóis estavam prontos para desprezar os mestiços, assim estes estavam prontos para desprezar os indianos locais de qualquer casta, a quem chamavam de «canarins».
(…)  A ditadura de Pombal, que de modo nenhum foi uma pura bênção quer para Portugal quer para as suas possessões ultramarinas, ao menos permitiu aos hindus de Goa um muito maior grau de tolerância.
(…)  Tolerância completa, essa teve que esperar até ao advento do constitucionalismo em Portugal, nos anos vinte e trinta de oitocentos, ou ainda, para algumas questões menores, até à implantação da República, em 1910."

 JFSR 2016



terça-feira, 19 de janeiro de 2016

RELATÓRIO AO GOVERNO - GOA 1956, ORLANDO RIBEIRO (2)



RELATÓRIO AO GOVERNO - GOA 1956, ORLANDO RIBEIRO (2)



A terra menos portuguesa de todas (…) Pátria para o goês é Goa (…) O meu sentimento pessoal não é favorável à larga utilização dos índios nos quadros da administração ultramarina

Relatório ao Governo

Uma missão de estudo: objectivos, processos de trabalho, âmbito e propósito das observações. Razão do presente Relatório

De 8 de Outubro de 1955 a 27 de Fevereiro de 1956, estive na Índia Portuguesa numa missão de estudo da Junta de Investigação do Ultramar, em que tive como colaboradores dois discípulos, a Doutora Raquel Soeiro de Brito, assistente da Faculdade de Letras de Lisboa, e o Doutor Mariano Feio, que anteriormente exercera, por alguns anos, o mesmo cargo. O nosso objectivo era poder elaborar um trabalho desenvolvido acerca da Geografia desses territórios portugueses, preparado em comum segundo as predilecções ou antecedentes científicos de cada um. Era de esperar que este trabalho, conduzido com desenvolvimento, mostrasse a que profundidade chegara a acção portuguesa através de quatro séculos e meio de história. Algumas observações francamente animadoras de geógrafos e sociólogos estrangeiros, como Gourou, Spate, Siegfried e Gilberto Freyre, receberiam assim ampla confirmação e o desenvolvimento que, nas actuais circunstâncias, parecia oportuno conceder-lhes.
(…) possuía assim uma perspectiva ampla ao iniciar as investigações na província de Goa. Esta apareceu aos meus olhos como a terra menos portuguesa de todas as que vira até então, menos portuguesa do que a Guiné, pacificada em 1912! O desconhecimento geral da nossa língua, a persistência de uma sociedade estranha e indiferente, quando não hostil, à nossa presença, a limitação da nossa influência, encerrada como um quisto no flanco do hinduísmo renascente, fizeram-me olhar Goa com uma grande decepção. (…)

Sentimentos dos goeses em relação a Portugal



(…) Pátria para o goês é Goa, é nela que eles desejam gozar liberdades e proeminências; entre os partidários da integração – e os hindus são-no em geral pelas razões de sentimento e cultura apontadas – e os partidários da união com Portugal (parece que mais ou menos convictos consoante sopram os ventos!), situa-se grande número de goeses cristãos, que acima de tudo desejariam íntimas relações com a Índia e a autonomia da sua terra. Aquilo que para alguns é uma espécie de dupla cidadania, goesa e portuguesa, de que aliás sabem tirar todo o proveito, preferiam-no eles em relação à União Indiana. (…)

Os goeses no quadro do Império português

(…) Receia, creio eu não sem razão, o Governo a desconfiança, ou pelo menos a antipatia, com que é olhado o índio nalguns lugares do nosso Ultramar.
(…) O meu sentimento pessoal não é favorável à larga utilização dos índios nos quadros da administração ultramarina. Ao contrário dos cabo-verdianos, colaboradores devotados e leais dela, tão portugueses nos sentimentos e na  mentalidade, esta gente, mesmo quando cristã, não se desprende do seu orgulho de raça (julgam-se superiores aos brancos), dos seus preconceitos da casta, da sua repulsa pelos negros, em cuja inferioridade acreditam. Quer dizer: como colaboradores de uma política de indiscriminação étnica e de verdadeira assimilação, teriam tendência a fazer o contrário do que se exigiria deles. Isto é, evidentemente, um perigo.
(…) Colocados em postos de iniciativa e direcção, ou servindo de intermediários entre o Governo distante e as populações locais, sem uma cuidada e segura formação portuguesa (e já vimos como a educação em Goa é deficiente neste aspecto), não sei até que ponto se deverá contar com eles.

Considerações finais

(…) Os problemas de Goa são complexos, difíceis, pesam sobre esses territórios um passado de abandono e um futuro de incertezas. Seria para nós motivo de grande satisfação, se o livro para que recolhemos estes materiais e que projectamos publicar, o mais breve possível, contribuindo para que melhor se conheça esta terra e esta gente, as suas necessidades e aspirações, ajudasse, de algum modo, a resolvê-los.
        Como algumas divindades hindus, providas de três rostos e seis braços, também a verdade sobre Goa tem formas várias e movediças. Estas notas, de certo modo marginais em relação ao trabalho científico essencial, procuram mostrar uma das suas faces. (…)
Lisboa, Abril de 1956

 *Bibliografia sob consulta directamente ao autor  

 JFSR 2016