sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O «LUSO-TROPICALISMO»



O «LUSO-TROPICALISMO»

O Estado Novo português, no período posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, utilizou o luso-tropicalismo, “quase-teoria” desenvolvida pelo  sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (Recife, 1900-1987) sobre a relação de Portugal com os trópicos.
Uma «arqueologia» do luso-tropicalismo revela que as suas bases começaram a ser lançadas em Casa-grande & senzala (1933), considerado um dos “livros que inventaram o Brasil”.
Em traços gerais, o luso-tropicalismo postula a especial capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos, não por interesse político ou económico, mas por empatia inata e criadora. A aptidão do português para se relacionar com as terras e gentes tropicais, a sua plasticidade intrínseca, resultaria da sua própria origem étnica híbrida, da sua “bi-continentalidade” e do longo contacto com mouros e judeus na Península Ibérica, nos primeiros séculos da nacionalidade, e manifesta-se sobretudo através da miscigenação e da interpenetração de culturas.
Em Portugal, até ao fim da Segunda Guerra Mundial, o pensamento de Gilberto Freyre apenas conheceu uma boa recepção no campo cultural. Da parte do poder político oscilou-se entre a rejeição implícita e a crítica aberta. O principal motivo de discordância relativamente à teoria de Gilberto Freyre radica na importância que o autor confere à mestiçagem.
Portugal, confrontado a partir de 1945 com a pressão internacional favorável à autodeterminação dos territórios coloniais, tentará delinear uma argumentação capaz de legitimar a manutenção do status quo nas colónias portuguesas. Esse processo de legitimação do colonialismo português exigirá alterações na legislação, uma reformulação doutrinária e medidas inéditas de fomento económico em Angola e Moçambique.


Gilberto Freyre inicia uma visita por “terras lusitanas”, a convite do ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues. O objectivo da viagem é dar a conhecer ao sociólogo brasileiro o ultramar português, para que ele o percorra “com olhos de homem de estudo” e, depois, produza um trabalho de reflexão sobre as realidades observadas. Será durante esta viagem que o sociólogo brasileiro usará pela primeira vez a expressão «luso-tropical» para caracterizar o modo de adaptação do português aos trópicos. 





                                                                               O registo de toda esta itinerância encontra-se assinalada em «Aventura e Rotina»(Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1953).


O Estado Novo soube apropriar-se de algumas máximas luso-tropicalistas para se defender das pressões da comunidade internacional, sobretudo no quadro da ONU (Portugal integra esta organização em 1955), mas também em campanhas de propaganda do país no exterior, nas declarações dos altos representantes da nação à imprensa estrangeira e nos circuitos diplomáticos.
Tudo indica, portanto, que a partir de meados da década de 1950 se verifica um esforço sistemático por parte do MNE de doutrinação dos diplomatas portugueses no luso-tropicalismo. O objectivo é muni-los de argumentos (supostamente) científicos, alicerçados na história, na sociologia e na antropologia, capazes de legitimar a presença de Portugal em África, na Índia, em Macau e em Timor.
 A necessidade de difundir e afirmar o luso-tropicalismo nas Nações Unidas torna-se ainda mais premente depois do início da guerra colonial em Angola e da ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. Tudo indica que o luso-tropicalismo foi surtindo efeitos no exterior, pelo menos até ao início da luta armada pela independência de Angola. A partir então, tornar-se-ia cada vez mais difícil à diplomacia portuguesa sustentar a posição anacrónica do Governo de Lisboa.
Nas margens do discurso oficial, o luso-tropicalismo vai encontrando receptividade junto de especialistas de diversas áreas do saber: Jorge Dias (antropologia), Orlando Ribeiro e Francisco José Tenreiro (geografia), Adriano Moreira (ciência política), Mário Chicó (história da arte), Henrique de Barros (agronomia), Almerindo Lessa (ecologia humana); António Quadros (filosofia), etc.
Adriano Moreira desempenha um papel fundamental nesse processo, na qualidade de professor e director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, depois Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (instituição de ensino superior que preparava os quadros da Administração ultramarina); e como director do Centro de Estudos Políticos e Sociais (CEPS) da Junta de Investigações do Ultramar (JIU), adstrito ao referido instituto.
No contexto das guerras de libertação de Angola, Guiné e Moçambique os governos coloniais e as Forças Armadas sentiram necessidade de desenvolver um conjunto de iniciativas político-sociais tendentes a granjear apoio entre as populações submetidas ao colonialismo português e a reduzir a base de apoio dos movimentos independentistas, bem como a "educar" os colonos nos valores da tolerância racial e dos direitos humanos. Entre os objectivos gerais da Acção Psicossocial figurava a promoção do entendimento entre pessoas de diferentes «raças» e de várias religiões, “dentro de princípios de humanidade, justiça e respeito pelos valores tradicionais, numa afirmação constante do conceito de luso-tropicalismo, que nos distingue de outras nações”.
Com o início da guerra em Angola, e a chegada de Adriano Moreira ao Ministério do Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas legislativas inspiradas no luso-tropicalismo. No novo contexto, procurou-se igualmente incutir nos portugueses a ideia da benignidade da colonização lusa ou, de forma mais eufemística, “do modo português de estar no mundo”. A propaganda encarregou-se disso, de forma incansável: era urgente moldar o pensamento para conformar a acção, sobretudo dos colonos e dos agentes do poder colonial no terreno. Desde então, uma versão simplificada do luso-tropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da auto-imagem em que os portugueses melhor se revêem: a de um povo tolerante, fraterno, plástico e de vocação ecuménica.
A partir de meados da década de 50, sucedem-se os avisos à navegação por parte de alguns cientistas que alertam para um “desvio” do comportamento dos colonos relativamente à “tradição” portuguesa.
No relatório confidencial da missão de estudo da JIU que empreendeu a Goa, em 1956, Orlando Ribeiro revela à sociedade a reduzida influência cultural portuguesa, a fraca implantação da língua, a debilidade da Igreja católica, o papel insignificante da mestiçagem .
No mesmo ano, no relatório confidencial elaborado pelo antropólogo Jorge Dias, relativa aos trabalhos da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, percebe-se que em Moçambique os mestiços são tratados como indígenas e a maioria dos colonos considera os negros seres inferiores. Em 1959, Jorge Dias dirige uma nova campanha da Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português. O relatório confidencial, enviado ao presidente do Conselho, volta a denunciar os casos de segregação racial.
Se a doutrina que formulou deu lugar a um séquito de admiradores e discípulos, também não deixou, ao mesmo tempo, de ser objecto de polémica no domínio da antropologia e de contestação no plano político.
A primeira crítica frontal surgiu em 1955 e deve-se a Mário Pinto de Andrade (numa reunião internacional promovida em França, por iniciativa de Roger Bastide), ao desmontar a concepção da pátria pluricontinental e multiracial que serviu de apoio à doutrinação e acção política do salazarismo e do marcelismo. Recorde-se, a propósito, que Gilberto Freyre, frequentemente hóspede de honra dos governos de Salazar e de Marcelo Caetano,não teve, que se saiba, antes e depois do 25 de Abril, qualquer afirmação categórica que o demarcasse desse aproveitamento.
"CORREIO Unesco" Jan 1974.Premonitório!...
É, sobretudo, como projecto que a ideia de comunidade luso-tropical sobreviveu ao seu autor, após o fim do império português. E vivifica agora na Comunidade de Países de Língua Portuguesa e no discurso político e ideológico mais consensual sobre a posição de Portugal no mundo. O risco actual está em continuar a ser usado como dispositivo retórico, numa perspectiva acrítica e imobilista. Ontem, para legitimar o colonialismo português; hoje, para alimentar o mito da tolerância racial dos portugueses e até de um nacionalismo português integrador e universalista, em contraponto aos «maus» nacionalismos, fechados, etnocêntricos e xenófobos.

Fontes: 
Castelo, Cláudia. A ler/ 5 Março 2013 | angola, Brasil, goa, Guiné-Bissau, lusotropicalismo, Portugal

http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio
Valdemar, António: "Repensar Giberto Freyre, Avenida da Liberdade; Diário de Notícias, 9 de Abril 2000

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